Pular para o conteúdo principal

Como quem conta um causo

Certa vez, há vários anos, destaquei que para desenvolver uma escrita original muitas vezes precisamos mergulhar em nossas experiências de vida e extrair delas o fator singular que nos diferencia. Entre as minhas experiências de vida estão os causos. Não é segredo para ninguém que gosto de contar minhas histórias assim, como se fossem conversas sussurradas em uma roda de amigos com quem tenho alguma intimidade. O que muita gente não sabe, entretanto, é que isso me coloca numa posição de intensa responsabilidade. A maneira como decido contar um causo pode determinar o seu sucesso ou o seu fracasso.

Eu e meu primeiro livro. Fonte: arquivo pessoal.

O que faço não é uma novidade. O início da tradição oral é um mistério, bem como a sua motivação, mas sabe-se que muitas histórias atravessaram as épocas pela manifestação da oralidade. Pergunto-me sempre porque temos tanta necessidade de comunicação, tanta propensão a invenção, e alguns vão dizer que essa é uma questão evolutiva. Na lei de uma natureza bruta e desigual, ganha aquele que se comunica melhor e que usa inteligentemente a sua imaginação. De fato, os homens das cavernas deixaram pinturas rupestres em diversos lugares espalhados pelo mundo. Nesse período, sem a experiência de formação de linguagem escrita, era pintando e desenhando que se projetavam as histórias além da tradição da fala. Assim aprendemos a registrar as informações.

Exemplo de arte rupestre. Clique aqui para acessar a fonte. Acesso: 06 mar. 2025

Depois do surgimento da escrita e da imprensa, transmitir as histórias e documentá-las ficou ainda mais fácil. Entretanto, a tradição oral ainda resistiu por muito tempo com os antigos trovadores. Esses cantavam e encenaram muitas das histórias escritas - seja por eles mesmos ou por outros autores - como forma de ajudar a divulgá-las principalmente entre um público mais iletrado, de modo que muitas ganhavam marcas de oralidade para se adequar a esses espectadores. Essa tradição oral/musical permanece até hoje. Os teatros e os filmes ainda hoje dão forma e cor a história escritas há centenas de anos, bem como alguns cordelistas ainda cantam rimas que estendem em cordões de poesia. Portanto, a utilização de marcas da linguagem oral em narrativas é um aspecto mais tradicional do que aparenta.

A arte dos trovadores. Clique aqui para acessar a fonte. Acesso: 06 mar. 2025

O cordel como patrimônio cultural. Clique aqui para acessar a fonte. Acesso: 06 mar. 2025

O que eu conheço de causos vem da tradição de um bisavô, seu Raimundo. Como pescador e feirante, ele sempre tinha um causo debaixo da manga para cativar amigos e clientes. Por isso, era um homem muito inteligente - ainda que, pelo fato de ser iletrado, não se achasse. As histórias do meu bisavô, sempre contadas com carisma apesar da ignorância, me ensinaram que a imaginação é tão ou mais importante do que o domínio da técnica de escrever. Até porquê, sem imaginação muitas das invenções humanas que hoje fazem parte de nossas vidas - e que se tornaram essenciais - sequer teriam sido projetadas. Toda grande ideia partiu de um esboço.

Ainda é discutível se a imaginação depende ou não depende da prática constante, mas é certo que a técnica de escrita precisa ser ensaiada diária e repetidamente. Até para contar um causo com estilo interessante, se faz necessário dominar a linguagem de um público em particular. No entanto, as linguagens são como instrumentos de trabalho e nem sempre estão tão acessíveis quanto parecem estar. Às vezes, apenas quando começamos uma obra é que sentimos falta de martelos extras. Da mesma forma, apenas quando investimos na escrita é que sentimos falta de certas ferramentas de linguagem. Entretanto, nesse tipo de narrativa mais oral, muitas vezes é preciso aprender através de detalhes do cotidiano. Os manuais de gramática podem até ajudar, mas será ouvindo a fala no dia a dia, atentando-se a pronúncia, a melodia e a escolha de palavras, que se potencializa o estilo de um bom causo. É, portanto, um exercício desafiador que envolve persistência, mas que depende, na verdade, do quão bom será o observador (ou artista).

Apesar do desafio, os causos seguem sendo o meu porto-seguro. Algumas vezes preciso sair do ninho, mas sempre acabo retornando. Se isso é uma herança familiar, ou um "retrocesso" evolutivo aos mais remotos tempos da humanidade, eu não vou saber responder. O único que sei é que a nossa cultura popular ainda sofre, sente falta de incentivo e consideração. Porém ela é o que temos de mais singular, o fator que nos torna originais e únicos naquilo que somos e fazemos nesse mundo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ajudante da professora

Não é que minha infância tenha sido diferente da do resto do mundo, mas o fato é que eu nunca me senti alguém normal. Ainda no pré-escolar, haviam outras 32 crianças que estudavam comigo. A cada dia do mês, dependendo da ordem alfabética da lista de chamada, um(a) aluno(a) era escolhido(a) para ser ajudante da professora . As tarefas de um ajudante eram simples: apagar o quadro negro; buscar água para a professora; garantir que os colegas de classe voltassem para a sala após o recreio; e outras tarefas simples como essas. Meus colegas de classe viam no fato de ser ajudante uma oportunidade de serem mais "respeitados". Era como se tornar o braço direito da xerife em uma região de desigualdades. Ser elegido como ajudante era equivalente a ser condecorado, pelo próprio presidente da república, com uma medalha por salvar a pátria. Entretanto, eu não pensava da mesma forma. Para mim, era um verdadeiro castigo ser ajudante da professora! Quando cr...

Diagramação e-book: kindle create

Certa vez, ao conversar com alguém sobre as minhas publicações, me ocorreu a noção de que os processos gratuitos de produção que utilizo (como autora independente) podem ser um mistério para muita gente. Pensando em ajudar pessoas como eu, que não dispõem de muito recurso financeiro para produzir seus livros, decidi hoje falar sobre a plataforma de diagramação gratuita que uso para a criação dos meus ebooks: o Kindle Create. Logo Kindle Create . Clique aqui para acessar a fonte da imagem . Acesso em 14 março 2025. Esse programa, vale ressaltar em primeiro lugar, aparentemente foi desenvolvido pela própria plataforma em que publico gratuitamente os meus ebooks, ou seja, o Kindle Direct Publishing (KDP). Essa plataforma, por sua vez, é propriedade da empresa Amazon e por isso os meus ebooks ficam disponíveis apenas (exclusivamente) na loja da Amazon (amazon.com.br). Em função disso, eu não saberia dizer se o arquivo final (disponibilizado pelo programa em formato de epub para exportação)...

As línguas da ficção

"A criação de mundos" 10 de abril de 2018 Para escritores, principalmente do gênero fantasia, a criação de uma língua "inédita" ajuda na contextualização e verossimilhança da narrativa. Na literatura moderna, pude ver com George R. R. Martin alguns dos principais aspectos linguísticos a serem considerados durante esse árduo processo de composição. Antes de qualquer coisa, vamos ver alguns desses mencionados aspectos linguísticos no vídeo a seguir, do canal Nerdologia : Como bem explica o vídeo, Tolkien foi e continua a ser um parâmetro para esse quesito. Ele chegou a criar inúmeras línguas, ao ponto de tornar suas narrativas apenas um reflexo dessa criação. Isso porque, de fato, as línguas contam histórias . Não é difícil precisar apenas uma razão responsável por tornar línguas, como exemplo o português e o espanhol, tão próximas em questão de ortografia e sintaxe. Além de Portugal e Espanha terem mantido relações políticas importantes durante sua história, isso pod...