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"As vidas que compõem os textos" 31 de maio de 2019 |
As personagens representam um dos pontos centrais de qualquer narrativa. É através delas que o escritor cria uma ligação de verossimilhança, e de aproximação, entre sua história e o seu leitor. Por essa razão, é importante discutir como podemos imaginar bons personagens e, acima de tudo, criar seres condizentes às nossas propostas.
Segundo Antonio Candido*, François Mauriac** propõe uma classificação um pouco diferente das personagens do romance, já que leva em consideração o seu nível de distanciamento e de proximidade, a partir do ponto de partida da personagem, com a realidade que o autor tenta supor. Esta classificação é feita da seguinte forma:
- Personagens Memorialistas: disfarce leve do romancista;
- Personagens Retratistas: cópia fiel de pessoas reais;
- Personagens Inventadas: a partir de um trabalho de tipo especial sobre a realidade.
Pessoalmente, acredito que todos os personagens partem de algum traço íntimo de seu autor, ou seja, partem de alguma característica de sua própria personalidade, ou da personalidade de outras pessoas que fazem parte de sua vida.
Mais recentemente, ainda segundo Antonio Candido, Forster*** categorizava os personagens em dois grupos: as personagens planas (Flat Characters) e as personagens esféricas (Round Characters).
As personagens planas são aquelas construídas em torno de uma única ideia, para servir a um propósito narrativo determinado e que, portanto, não mudam em sua essência e espírito mesmo no decorrer dos acontecimentos da trama. Se uma personagem diz "jamais deixarei meu marido" e realmente não o abandona, apesar dos acontecimentos da trama, ela é um exemplo de personagem plana. Por isso, nas narrativas, elas podem assumir um tom cômico, porque se são sérias há grande chances de que sejam enfadonhas e sem-graça.
As personagens esféricas são bastante complexas, até mesmo de explicar. Antonio Candido acredita que elas se chamem assim por terem três dimensões narrativas e não apenas duas, porque demonstram mudanças de acordo com os acontecimentos desenvolvidos na trama. As personagens esféricas, portanto, são imprevisíveis, possuem uma densidade e complexidade psicológica mais apurada, podem surpreender bastante durante a narrativa e, por isso, devem ser usadas para alcançar pretensões altas do(a) autor(a).
É importante saber que cada um desses tipos de personagens podem compreender uma mesma narrativa. A única questão é que: no que o autor deve se basear para criar uma personagem? E aqui está o ponto onde quero chegar: o autor se baseará no tipo de história que ele pretende narrar. Para planejar uma personagem, em primeiro lugar, temos que ter em mente o tipo exato de narrativa que almejamos, já que elas serão um produto desse planejamento.
Se meu objetivo é, por exemplo, desenvolver uma história de ficção científica, que basicamente explore seres de outro mundo, eu preciso ter uma ideia bem formada de como essas personagens serão compostas, quais serão seus pontos fracos, em quê seus valores serão baseados e para quais propósitos eles servirão para mim dentro da história. Somente então terei alguma ideia de como tais personagens conduzirão a narrativa que pretendo apresentar.
Mesmo se, passada esta questão, decido que meu foco será personagens humanos, o planejamento não deixará de ser difícil. Pessoalmente, considero este o tipo de personagem que mais exige de minha imaginação, visto que, se baseado no verossímil, quanto mais complexa for a sua personalidade, mais ela terá a acrescentar em minha narrativa.
Nesses casos de criação de personagens, eu sempre sigo o que chamo de "Paradoxo do Espelho", que consiste, basicamente, no seguinte passo a passo:
1. Pego um pedaço de papel em branco e uma caneta.
2. Traço uma linha reta no meio, dividindo-o em duas metades.
3. Em um dos lados descrevo o "protagonista" da minha história.
4. Do outro tento descrever o "antagonista".
No fim, tenho os personagens principais de minha narrativa:
Como no exemplo acima, o protagonista e o antagonista da sua história podem ter algumas características semelhantes, porém devem ter objetivos "opostos" para que suas funções na narrativa sejam complementares. Personagens secundários podem seguir este mesmo tipo de dinâmica, embora eu não ache estritamente necessário. Ao contrário dos protagonistas, cujas ações movimentam de fato os acontecimentos, as personagens secundárias podem seguir apenas uma linha de raciocínio, ou servir somente a um propósito narrativo em específico (personagens planas).
Por fim, é realmente difícil criar personagens inspiradores. Quando planejo os meus, e estes são quase sempre humanos, acredito que quanto menos clichê eu conseguir fazer, melhor será para minha narrativa. Porém, em se tratando da grande quantidade de tipos de literatura, tudo sempre se torna relativo. Resta a você saber o que de fato pode funcionar dentro da sua história.
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* Antonio Candido, A Personagem do Romance, presente no livro A Personagem de Ficção, Editora Perspectiva, 2ª ed., São Paulo, p. 51-80.
** François Mauriac, La Romancier et ses Personnages, Éditions Corrêa, Paris, 1952.
*** E. M. Forster, Aspects of the Novel, Edward Arnold, London, 1949, pp. 66-67.
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