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Andarilho

Brados jovens aos viajantes no tempo
12 setembro 2018


Ao abrir os olhos, a mais ínfima clareza ainda permanecia obscura. Era cedo, muito cedo, talvez cedo demais. Porém, quando o primeiro raio do sol despontou no horizonte, o banho já estava tomado e o fardo já havia sido suspensos às costas... Mais uma vez. Não se chateava em ter que tomar café rápido, mas por fazê-lo assim todos os dias. Era desconfortável sentir o líquido quente ainda ardendo na garganta enquanto caminhava na rua.

Mesmo assim, sem nem mesmo esperar as cores despontarem nos céus, camuflando a imensidão de sóis equidistantes, àquela altura o seu ciclo já havia começado e não havia escolha. Nada que merecesse atenção, afinal era só mais um repetitivo ciclo de uma vida qualquer em meio a outros tantos bilhões. Até que se compreendia a obrigação, as necessidades de se manter naquela batalha, mas talvez a razão ainda não fosse clara, e a intencionalidade às vezes fosse relativa. Para quê tanto sacrifício, afinal?

Algumas quadras depois, quando o café quente já havia se dissolvido em seu corpo, o semáforo fechou. Do outro lado da rua, cruzando o semáforo, observou-se um velho andarilho cego se aproximar vagarosamente. Entre a comunhão de pessoas que se quer o olhavam, ele atravessava na faixa de pedestre, tateando os obstáculos com sua bengala. Antes de passar pelo homem, já no meio da avenida, um rapaz o derruba e deixa-o entregue a própria sorte. O homem cego foi lançado ao chão, sem cerimônia, enquanto dezenas de passos cruzavam seu caminho. O seu primeiro instinto é ajudá-lo, erguê-lo do chão gelado, praguejar contra a insensibilidade do homem que já se fora, porém se contenta com uma pergunta mais importante:

- O senhor está bem? - questiona-se, enquanto ajuda o pobre homem a se levantar. Tendo colocado suas mãos frágeis e enrugadas na sua, a recuperação do velho pareceu mais rápida que a queda.

- Sim, estou - respondeu o sujeito, sorrindo. Mas porque sorria? Para ele havia graça no que se passara? Não havia se chateado com a arrogância do sujeito que o derrubou? Por quê? - Obrigado, Jovem.

Jovem? Como o velho sabia que era jovem se não conseguia enxergar? Talvez pela força física ou entonação da voz? Alguma tática que adquirira com a experiência. Antes de qualquer outro questionamento, as mãos se soltaram, e a bengala foi escolhida pelo velho, que atravessou a faixa e prosseguiu em seu caminho. O semáforo consentiu o avanço dos carros, mas ainda não superara o ocorrido. Jovem? Olhando o velho se distanciar, percebeu que até um cego sabia que realmente era um jovem, que ainda podia retirar qualquer fardo dos ombros quando quisesse... A verdade era compreensível agora. O que derrubou e o que ergueu eram as provas de que nem sempre os cegos são somente aqueles que não têm a capacidade de ver.

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