Pular para o conteúdo principal

Leitura Construtiva de "A Metamorfose", Franz Kafka

A "meta-amor-fosse" de um belo pôr do sol.
29 de maio de 2019


"A metamorfose" é uma das obras mais estranhas que já li. Difícil imaginar boas intenções quando se começa uma crítica com uma afirmativa assim, não é? Entretanto, acredite, nesse caso o adjetivo aplicado não tem nenhum sentido perjorativo. Em verdade, a estranheza de cada página desse livro é a responsável pela sua beleza estética.

Como uma narrativa dessa natureza, com toda a sua complexidade e precisão, pode ter sido escrita em apenas vinte dias? Mistério! Apesar de se conhecer a mente genial por trás dessa história, soa assombroso supor que uma infinidade de reflexões sociofilosóficas tão profundas pudessem sair destas páginas. Devido a uma aposta de precisão, Kafka não se perde em prólogos e nos põe à mesa, logo ao primeiro trecho, a situação do protagonista: Gregor se transformou em um inseto e ponto final. Não sabemos o que o levou a essa situação. Não sabemos se Gregor foi amaldiçoado por uma bruxa má, ou se caiu acidentalmente dentro de um tanque de gosma radioativa. Kafka preferiu não se corromper com o explicar dos porquês de cada coisa, por isso no início o leitor se encontra um tanto quanto perdido, porque não se sabe estar diante de uma obra de ficção científica ou de fantasia. O bom leitor escolhe continuar, insistir na proposta se não por encanto, mas por ansiar respostas. Uma resposta que nunca virá de forma escrachada ou ridícula, tampouco do jeito que se espera (e daqui vem a tal estranheza mencionada a princípio).

Com o passar das páginas, o leitor percebe que a situação "curiosa" de Gregor é a menor das preocupações e assim espera uma resolução muito mais complexa do que a princípio sugeria. Ao passar as páginas, genialmente, o leitor se transforma também, redirecionando suas intenções. Mas apesar de haver se transformado por fora, por dentro Gregor continua o mesmo, o que faz pensar que a mutação ao qual Kafka se refere também está relacionada à sua família. O Pai, a mãe e a irmã de Gregor se transformam em puro rancor, oportunismo e desespero, enquanto buscam sozinhos os seus próprios meios fáceis de sobrevivência. Em verdade, o grande trunfo da obra é analisar as transformações como uma via dupla do ser e não ser de cada personagem, pois Gregor trabalhava para sustentar a sua família parasita, que se tornou completamente dependente do seu sucesso, e quando ele se torna o parasita, a sua família é quem trabalha, utiliza de seus meios para se autossustentar.

Do ponto de vista metafórico, podemos supor que essa narrativa apresenta uma crítica ao papel do trabalhador na sociedade que, principalmente, supervaloriza os bens de consumo. Posto que, mais do que uma reflexão às relações familiares, o final da obra traz em sua bagagem a crítica aparente de que, para a sua família, Gregor não tem valor como inseto, visto que não pode sustentá-los enquanto vivendo nessas condições. Da mesma forma, para uma estrutura de sistema consumista, a incapacidade do sujeito em se submeter como trabalhador, produtor dos bens, faz com que Gregor também perca o seu valor. Nesse caso, o trabalhador só passa a ser necessário enquanto pode alimentar ao sistema. Assim, na relação do homem com o mercado, não há uma via de mão dupla. A grande charada da obra é especular a ineficiência do sistema, nesse caso representada pela família, em retribuir a alimentação que recebeu durante a contribuição, a mão de obra, de seus trabalhadores. É por isso que, a meu ver, Gregor acaba morrendo de inanição.

No final, vê-se que o texto enxuto e, ainda por cima, ficcional torna-se um garimpo. Peneira-se a areia atrás de ouro, mas não se compreende que, ao falar de Kafka, podemos encontrar pedras muito mais preciosas do que o ouro na sua escrita.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Saga de Baleia

Cientistas tentam, desde remotos tempos, compreender como funciona a cabeça dos caninos. Tudo o que sabem é ainda muito limitado e pode não ser aplicado com tamanha firmeza quando falamos do Baleia. Devemos considerar que seu nome não fora forjado especificamente por seu porte físico. Baleia, na verdade, é um cão magrelo e rabugento, que fuçava os clientes de uma pequena lanchonete na tentativa de induzi-los a dar-lhe comida. Seu nome foi escolhido por sua semelhança icônica com o cãozinho Baleia, magistralmente descrita por Graciliano Ramos no consagrado "Vidas Secas", que por sua vez suponho que deve ter o escolhido por pura ironia. A saga de Baleia não durou mais que uma tarde, mas foi suficientemente distinta para valer a apreciação de alguns versos despropositais. Tudo começou no almoço, quando Baleia se aproximou com desdém da mesa onde estavam sentados quatro estudantes da UFRN. Não havia como reconhecê-los desde sempre, pois em verdade Baleia viveu sua miserá

Cabeça de Árvore

Às vezes, fico a imaginar: e se toda cabeça fosse uma árvore? O caule seria o pescoço, a sustentação, e os galhos seriam as veias, responsáveis por conduzir os nutrientes, por ligar as pontas? As folhas, na minha árvore, poderiam ser os neurônios, mas também o oxi(gênio), o ar, os pulmões? Mas o que me interessaria mais seriam as flores e os frutos, afinal, como eles se produziriam naquele jardim? Quais frutos poderiam dar a minha cabeça? Bons? Ruins? Azedos? Amargos? Doces? Aguados? Será que os passarinhos voariam até minha cabeça, comeriam os meus frutos e construiriam os seus ninhos entre os meus galhos? Será que alguém conseguiria viver nas minhas ideias e se alimentar delas? E como seria morar entre as flores novas e velhas? Imagino a confusão, a angústia das noites de inverno frio, quando os pesadelos dessem asas à boa e a má imaginação. Imagino o vento cortante a me deflorar no outono, durante uma tempestade, a me despedaçar como a decepção que cerca a realidade distante, monóto

A jornada "clichê" do herói

Já percebeu que vários heróis da ficção, e diversos personagens do mundo antigo, frequentemente apresentam algumas características em comum? Já imaginou qual poderia ser a razão disso? Pois bem, aqui você irá conhecer o legado de Joseph Campbell para as ficções e finalmente por um fim em todas essas dúvidas. O herói de mil faces  tornou-se um livro de referência aos escritores. Campbell, no entanto, era estudioso e teórico da mitologia. Nessa obra, especificamente, ele buscou apresentar conceitos que os heróis mitológicos compartilhavam em comum, mas acabou trazendo à luz uma fórmula que seria utilizada por diversos contadores de histórias, no decorrer das mais diversas épocas: a jornada do herói. A jornada do herói. Disponível em:  https://expertdigital.net/a-jornada-do-heroi-pode-levar-seu-marketing-de-conteudo-a-novas-alturas/#gsc.tab=0 . Acesso 19 jun. 2020. A jornada do herói começa no mundo como conhecemos, ou como nos é apresentado na narrativa. O herói arquétipo, figura comumen