Para narrar bem qualquer tipo de história, o autor precisa entender que não é a sua voz que deve prevalecer no enredo. Na verdade, ele deverá optar entre os diversos tipos de narradores para contar seu "causo" da forma mais inventiva e original possível. E uma dessas opções é o narrador em primeira pessoa, ou seja, um tipo de contador de histórias que vivencia toda a trama e que pode trazer um toque especial para a narrativa.
Muitos não sabem que essa escolha pode ser determinante para o sucesso de toda uma obra. Em minha opinião, um dos pontos mais fortes de escrever uma narrativa em primeira pessoa é justamente a possibilidade de dar voz a um personagem da trama, ou seja, a alguém que não apenas narra, mas que também tem suas próprias vontades e que pode interferir diretamente no enredo. O narrador em primeira pessoa, entretanto, não deve de forma alguma ser como um retrato do próprio autor, alguém que é exatamente igual ou que tenha as mesmas opiniões que o criador da trama. Na verdade, o narrador personagem deve ter suas próprias manias e convicções, de modo que o seu jeito de ver e processar os fatos a sua volta pode acabar moldando o seu próprio caráter.
Ao contrário do narrador de terceira pessoa, ou seja, de alguém que apenas detalha aquilo que observa e sabe - às vezes com onisciência - tudo sobre os personagens (desde os seus pensamentos e sentimentos mais íntimos até o seu futuro, presente e passado), o narrador de primeira pessoa possui algumas limitações:
a) ele não sabe todos os detalhes da história. É, na verdade, muito estranho quando o narrador de primeira pessoa parece uma figura onipresente, consciente de absolutamente tudo o que está acontecendo ou que aconteceu. Mesmo quando ele escuta algo que foi contado por terceiros, ainda deve haver marcas de imprecisão no seu relato;
b) a não ser que tenha poderes psíquicos, o narrador personagem também não consegue ler mentes ou decifrar pensamentos ou sentimentos alheios. No máximo ele pode fazer suposições a respeito do outro, mas jamais terá a absoluta certeza de nada que diga respeito a uma terceira pessoa.
Uma narrativa em primeira pessoa também pode facilitar a criação de uma reviravolta na história. Isso acontece, por exemplo, com as aventuras de Sherlock Holmes (personagem de Arthur Conan Doyle). As tramas policiais do detetive mais famoso do mundo nunca são narradas por ele mesmo, mas sim pelo seu amigo Dr. Watson. Isso acontece justamente para concretizar a reviravolta na história, uma vez que apenas depois de atestados os fatos vistos é que o leitor consegue decifrar (junto ao narrador) como o investigador chegou a essa ou aquela conclusão a respeito do culpado, ou da culpada, pelo crime. Esse estilo de narrador também foi seguido por outros autores do gênero policial como, por exemplo, Agatha Christie. É, portanto, um tipo de estratégia muito eficaz no gênero de mistério, pois o narrador acompanha a história como observador durante quase todo o tempo e, como não sabe o que o detetive está pensando ou sentindo durante a sua investigação, apenas no final da trama ele consegue revelar o que desencadeou àquele desfecho específico.
Outro ponto positivo da narrativa em primeira pessoa é a oportunidade única de delinear a complexidade de um personagem através daquilo que ele narra e, principalmente, através da forma como ele narra. Quando ficamos sabendo de um acontecimento através de alguém, na verdade estamos ouvindo apenas uma versão dessa história. Se outra pessoa nos contasse o mesmo fato mais tarde, certamente ela soaria diferente ou, como muitas vezes acontece, poderia nos influenciar de que nada aconteceu exatamente como nos contaram anteriormente, moldando não somente a nossa opinião sobre a história, mas também a nossa opinião sobre as pessoas envolvidas na história.
Dois grandes mestres desse tipo de narrador são Guimarães Rosa e Machado de Assis. Na academia, até hoje, se discute em qual nível de profundidade a personalidade de Bentinho, que é protagonista e narrador da obra "Dom Casmurro", influenciou a narrativa e moldou o caráter de Capitu para os leitores. Não temos indícios claros de que sua esposa tenha lhe traído, por exemplo, o que realmente temos na narrativa são as suas desconfianças, crenças que muitas vezes parecem reforçadas pelo seu ciúme exacerbado. Em toda narrativa vemos a construção da dúvida, mas a única certeza que o leitor tem sobre os fatos parte de um narrador cuja personalidade acaba moldando a trama e isso nos coloca em questionamento. Já em Grande Sertão Veredas, Guimarães nos apresenta a um narrador muito regionalista e complexo. Riobaldo tem o seu próprio modo de falar, cheio de gírias e neologismos típicos da sua cultura e do seu nível de escolaridade, de modo que toda a história, quando contada através da sua voz e do seu ponto de vista, ganha um toque especial (e original) que é no mínimo muito interessante.
Veja que, principalmente nos dois exemplos do parágrafo anterior, existe uma separação clara entre o personagem/narrador e o autor. Os narradores de ambas as histórias são personas fictícias, sujeitos que nada tem a ver com o próprio escritor (até onde sabemos, Machado não possuiu muito da personalidade de Bentinho e Guimarães foi um dos maiores intelectuais de seu tempo e possuía, portanto, domínio da linguagem culta). Para narrar bem em primeira pessoa, portanto, o autor precisa criar, assumir e incorporar (mais ou menos como um ator realmente) a personalidade de seu personagem, ou então será sua a voz que ecoará pela narrativa e essa pode perder uma essência que a destacaria entre outras tantas obras.
Desse modo, sugiro que antes de escolher o narrador perfeito para a sua história, entenda todas essas nuances e certamente você terá feito um grande trabalho.
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Imagem meramente ilustrativa sobre o tema. Design criado por Alane Moura. |
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