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Minha cara amiga*,
Só você para me fazer escrever uma carta em meio a uma era digital. Um e-mail, confesso, seria mais prático. Entretanto é verdade que enxergo na escrita a próprio punho um charme especial. É um exercício que exige atenção redobrada e um foco intenso, pois qualquer deslize da caneta ou qualquer merda distração pode acarretar um erro que nos fará voltar para uma estaca zero. É algo parecido com a vida, na verdade, a qual uma simples decisão equivocada pode causar um efeito aterrador e repercutir pelo resto de nossa existência.
Se bem entendi sua proposta, devo dizer aqui o que mais ou menos achei de toda essa experiência com as cartas de dona Ciça. Para fazer isso, entretanto, peço que primeiramente permita-me dizer o quanto passei a admirar essa mulher durante todos esses anos em que nos comunicamos. Ainda que eu não concordei com ela, ou que apenas não consiga enxergar a vida sob uma ótima parecida com a dela, devo dizer que as suas cartas me fizeram ter uma esperança indescritível em relação às pessoas. A razão disso, por outro lado, não quero me arriscar a especular, pois ainda não aprendi como exatamente pensar a respeito.
Por enquanto, acho que vale mais a pena ressaltar que dona Ciça foi uma pessoa ímpar. Essa mulher jamais se permitiu abalar por minhas críticas ou por perguntas capciosas que eu formulação na clara tentativa de fazê-la desistir do que acreditava. Ela lutou bravamente, tanto em suas tentativas de me revelar a sua verdade quando no tratamento da doença que, no final das contas, acabou vencendo o seu corpo cansado (ela faleceu de um câncer de pulmão, até hoje especulado como uma espécie de sequela da infecção do vírus COVID-19). Entretanto, se o Céu que ela defendeu todo esse tempo realmente existe, espero que lá esteja descansando. Nesse mundo, sou capaz de assegurar, jamais encontrei outro alguém que merecesse tanto estar certa.
Enfim, é impossível não se impressionar com a sua forte convicção de fé. Não sou o único incrédulo da face da terra que desdenha das crenças de populares, mas sou um dos poucos que reconhece a complexidade que deve ser acreditar em "algo" quando a maioria das coisas do mundo na verdade aponta para um "nada". Ser cristão, para mim, é isso: manter o otimismo puro em relação à vida e também cultivar a esperança que transcende tudo o que conhecemos hoje. Reconheço o valor dessas pessoas porque, para homens como eu, a vida não tem um sentido racional.
Não acho que essa incredulidade seja um fator que, especificamente, tenha nos levado a uma vida totalmente triste através das eras. Apesar de que às vezes passemos por momentos de muito questionamento, há outras ocasiões em que nos divertimos até através de pequenas coisas. Pessoalmente, entretanto, são nos momentos angustiantes que eu realmente gostaria de tocar, com minhas próprias mãos, um Transcendente, algo ou alguém capaz de regenerar minha confiança ou de me convencer de que existe uma razão por trás de tudo, inclusive de todas as misérias, que vivenciamos nessa nossa breve passagem sobre a terra.
Dona Ciça acreditava, de todo seu coração, que esse alguém apenas poderia ser Deus. Seu legado, entretanto, deve ser apreciado. Ela tinha uma proposta válida para justificar o mundo a nossa volta. Ainda que a sua teoria não possa ser comprovada cientificamente até esse presente momento, mesmo certo de minhas convicções, muitas vezes me perguntei como nossa realidade seria acaso todos, absoluta e definitivamente, possuíssem a mesma certeza de Deus que ela mantinha. É nesse ponto, porém, que não consigo usar minha imaginação. No final das contas, minha cara, acaba sendo melhor assim. Devo aceitar minhas limitações, nem que seja para respeitar a forma como cada pessoa escolhe pensar a respeito da própria vida.
Então, deixe-me resumir: todavia sou o mesmo Cético, mas aos poucos venho me tornando mais esperançoso. Penso, e nisso concordo com a dona Ciça, que existe sim um caminho para chegarmos à paz. A questão ainda é encontrar a motivação para segui-lo apesar de tudo.
De seu amigo Cético,
06 de janeiro de 2025.
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* Após a última carta de dona Ciça, fiquei curiosa para saber como meu amigo Cético havia interpretado essa experiência religiosa e então sugeri que, para encerrar a jornada, ele me escrevesse uma carta a próprio punho detalhando seus sentimentos em relação a tudo. Nesse epílogo, portanto, lemos finalmente as palavras de Cético.
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