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Freud e os gatos

Da esquerda para direita: Edu, o sapeca, e Ravi, o majestoso.


"O tempo gasto com gatos nunca é tempo perdido" era o que dizia Sigmund Freud, não sei se antes ou depois de anunciar claramente que não gostava de gatos. Contraditório? Depende do ponto de vista: 1º como humanos, estamos sempre propensos a mudar de opinião; 2º o fato de não apreciar gatos não define a relevância real deles. Gatos podem ser incríveis, ainda que eu não os tolere, pois assim é a vida. Faz parte da humana existência.

Sorte a minha que não vivo a contradição de Freud. Aprendi a gostar de gatos convivendo com eles e, com essa experiência posso lhes dizer, precisamente, que não existe forma mais honesta de gostar de algo, alguém ou alguma coisa. Mas há, porém, o momento certo em que se faz notável a mudança desse sentimento. E esse momento, foi naquele dia.

Foi um dia corrido. Havia passado metade do tempo dentro da universidade, trabalhando as palavras dos velhos poetas, até sentir o cansaço e o peso da rotina pender sobre os meus ombros. Se pudesse, naquele dia em específico, teria ido embora cedo. O problema, pois, digo: residente do interior do estado, longe da academia, não tinha à disposição muitas opções de transporte seguro e, portanto, precisava esperar o horário certo do ônibus para finalmente fazer o percurso até a minha casa.

Conformada com a minha sina, sentei-me cansada em um dos degraus da escadaria e ali fiquei a divagar um tempo sobre a vida e tudo o que havia nela. Vi, um tanto distante e sem de fato enxergar, o passar dos transeuntes de todos os tipos e arquétipos até me chegar certa fome. Abri um pacote de salgadinho que se escondia no fundo da bolsa e, quando estava já comendo, senti quando um gato se aproximou.

O bichano inocente de repente passou a me olhar. Seus olhos, brilhantes, traziam a perfeição circular de uma pupila dilatada. Imaginava que aquela característica era típica dos felinos que pedem alguma coisa, e quando de repente ele começou a miar com muita convicção, tive certeza de que eu realmente possuía algo que era de seu interesse. Por força do hábito, interpretei essa sua reação como digna dos efeitos da fome, natural a animais abandonados. Portanto, como por instinto, coloquei próximo a suas patas um dos salgadinhos que eu estava comendo.

O gato cheirou o salgadinho, e até chegou a mordê-lo, mas no fim preferiu não comer. No começo, entendi a sua reação, pois sabia que aquela não era a comida mais "apetitosa" para um gato, mas houve posteriormente um fato que não entendi de imediato: mesmo sabendo que eu não tinha uma comida apropriada para oferecê-lo, o gato continuou miando e me pedindo (ou quase implorando) por algo.

Parada, estranhei a atitude do bichano, e então deixei que ele se aproximasse de mansinho, roçando em minhas pernas e parando logo depois ao meu lado. Mesmo agindo de forma antinatural à minha postura, e também à postura desprendida dos felinos, resolvi fazer "um carinho" nele, alisando a parte de cima de sua cabeça em um movimento suave e até tímido. Surpreendentemente, somente após isso, o gato finalmente sossegou, parou de miar e se sentou, descansando ao meu lado.

Naquele momento, ambos distantes de casa mesmo que por razões distintas, me pus a pensar como que felinamente:

- É, gente, às vezes só precisamos de carinho.

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